Por Lucas do Amaral Afonso – Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense.

La serveuse de bocks
La serveuse de bocks. Fonte: isabel.com

Dando continuidade às matérias sobre a minha dissertação de mestrado, que resumi basicamente em matéria anterior, apontarei a seguir alguns caminhos para pensar o processo de produção de um objeto de pesquisa.

A primeira dificuldade que podemos encontrar em um processo de escrita acadêmica é a construção do objeto de estudo. Às vezes temos uma ótima ideia de estudo e, ao apresentar para algum especialista da nossa área, somos interpelados pela famosa pergunta: “qual é seu objeto de pesquisa?”.

A primeira coisa a se fazer é retornar a pergunta: “o que é um objeto de pesquisa?”. Porém, nem sempre temos intimidade ou então a pessoa especialista em determinada área nem sempre tem tempo disponível para nós. Resta aqui aquela sina que toda pesquisadora e pesquisador precisa reconhecer: o processo individual da pesquisa. É obvio que a ciência só é possível em conjunto. A ciência é coletiva, é uma obra social que avança a cada pequena e irrisória parte alimentada por cada pessoa que participa deste empreendimento social. Mas a iniciação à ciência nos impõe uma experiência que precisa ser vivida individualmente e, como diria Caetano Veloso, “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.”

Uma vez assumida essa responsabilidade, vamos entender então que ideia é essa de objeto de pesquisa. Objeto, como sabemos é uma coisa inanimada. Mas neste caso, estamos tratando de um sentido mais estrito do termo. O objeto aqui é a coisa que será observada, analisada. Então vamos lá. Uma colega de trabalho afirmou esses dias que um grupo de alunos de uma certa escola é seu “objeto de pesquisa”. Tenho que discordar, pois alunos são pessoas e pessoas não são coisas, muito menos inanimadas. Neste caso, acredito que ela quis dizer que o grupo de alunos tem alguma relação com o seu objeto de pesquisa.

Vamos refletir sobre a síntese de Gaston Bachelard: “O objeto é construído”. Logo, ele não é a coisa dada de imediato. Ou seja, meu objeto não é um aluno, uma escola, um grupo de pessoas. Meu objeto é uma pergunta que envolve, de alguma maneira, um aluno, uma escola, um grupo de pessoas. Pierre Bourdieu, um sociólogo francês, juntamente com dois colegas de profissão escreveu um livro chamado Ofício de Sociólogo e, para qualquer pessoa que se propõe a pesquisar a área de ciências humanas, é uma leitura relevante.

Não existe um manual de como produzir uma investigação. E que bom que não existe. Isso implica que nós, pesquisadores e pesquisadoras é que iremos construir a nosso objeto de investigação. Então vamos fazer um combinado: quando me refiro a “objeto”, quero dizer também “problema” ou “pergunta”. Toda pesquisa tem uma pergunta fundamental. Quando você iniciar a sua, é importante se perguntar: “qual é a pergunta fundamenta da minha pesquisa?”. Isso é difícil e acaba sendo uma barreira para muitas pessoas que querem ingressar no universo acadêmico. Esse era o gancho que eu precisava para falar da minha dissertação.

Em uma disciplina do Curso de Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, tive acesso ao texto Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem, do sociólogo Oracy Nogueira. Este texto me impressionou, tanto pela qualidade da pesquisa realizada pelo autor, quanto pelo fato de ele ter feito uma pesquisa em Itapetininga na década de 1950. Concluí o curso de ciências sociais e me inscrevi para o mestrado no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. O projeto de pesquisa que eu submeti ao programa tinha como referencial teórico local apenas o texto de Oracy Nogueira, citado acima, e da dissertação de mestrado da professora Thais Maria Souto Vieira, que pesquisou o contexto da agroecologia em um assentamento rural da região.

No decorrer do processo de pesquisa, me deparei com a obra família e comunidade: estudo sociológico de Itapetininga, também de Oracy Nogueira. Neste trabalho me interessei pela interpretação das disputas políticas locais e pela mudança no aspecto industrial no município na década de 1950. Posterior a isso, construí a seguinte pergunta: o que motivou a chegada da indústria têxtil Nisshinbo do Brasil para o município de Itapetininga na década de 1970? No entanto, ao buscar responder essa questão específica, me deparei com diversos impedimentos que descrevo melhor na dissertação. Contudo, nessa mesma busca, tive contato com um discurso hegemônico da imprensa local sobre a “expansão industrial de Itapetininga” na década de 1970.

Dessa maneira, fui entender melhor essa história de expansão industrial local. Comparei os dados de Valor da Produção Industrial da região com outros municípios do estado e, de fato, houve uma expansão industrial. Posteriormente, minha tentativa foi responder como essa expansão estava relacionada à prática dos políticos locais do período, dando especial ênfase aos atos dos executivos locais. Por fim, nas últimas semanas de escrita da dissertação eu vi, diante de mim, o objeto construído: como a industrialização se torna pauta política? Um estudo de caso do município de Itapetininga.

A ciências, às vezes é vista como uma coisa distante das pessoas, dos humanos e que apenas alguns sujeitos podem acessá-la. De fato, na prática isso acontece por inúmeros motivos que não cabem discutir aqui. Por isso é importante que as pesquisas possam ser apresentadas para públicos não especialistas. Isso não faz com que os especialistas deixem de sê-los. Manet, por exemplo, rompe com um aspecto tradicional da técnica ilusionista de pintura e aperfeiçoa uma técnica que permite visualizar os traços da pintura, o processo de produção, a matéria em si de uma tela, de um quadro. Na obra, La peinture de Mane, Michel Foucault comenta uma pintura do artista, La serveuse de bocks, no qual o espetáculo está oculto aos olhos dos espectadores do quadro. Acredito que podemos encarar a construção de um objeto de pesquisa como algo parecido. É uma pergunta construída, cujo processo dessa construção está oculto aos olhos de quem lê seu resultado (o artigo, a monografia, a dissertação, a tese, etc.). Por isso, não podemos falar “como construir um objeto de pesquisa” e sim “como construímos nosso objeto de pesquisa” em uma ocasião específica.

Na próxima matéria falarei mais sobre os motivos de pesquisar o município de Itapetininga.

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