Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, a declaração emitida pelo presidente da República sobre Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira – pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – “reveste-se de enorme gravidade, não só pelo atrito com o decoro ético e moral esperado de todos os cidadãos e das autoridades públicas, mas também por suas implicações jurídicas”.
No contexto de um comentário sobre a atuação do Conselho Federal da OAB, segundo divulgado por veículos de comunicação na segunda-feira (29), o presidente da República declarou que “um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele”. E completou: “Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar a essas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”.
Em nota pública, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão ressalta que raras situações provocam tanto sofrimento quanto o desaparecimento de um ente querido. “No Brasil, mais de 80 mil famílias se deparam, a cada ano, com a situação de desaparecimento, de distintas origens: problemas sociais, de saúde e desaparecimentos violentos. Todas sofrem, quase sempre silenciosamente, essa dor perene, que não cessa enquanto não se descobre o paradeiro da pessoa querida. O respeito a esse penar é um sinal de humanidade e dignidade, praticado por distintas civilizações e todas as religiões. O direito a um funeral é, aliás, parte essencial de qualquer cultura humana e sua supressão, um dos mais graves atos de crueldade que se pode impor a uma família”, apontam a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e o PFDC adjunto Marlon Weichert.
A PFDC enfatiza que o crime de desaparecimento forçado é permanente, ou seja, sua consumação persiste enquanto não se estabelece o paradeiro da vítima. Dessa forma, qualquer pessoa que tenha conhecimento de seu destino e intencionalmente não o revela à Justiça pode ser considerada partícipe do delito.
Ainda de acordo com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, “o desaparecimento forçado por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, é uma grave violação aos direitos humanos, conforme estabelecem duas convenções internacionais promulgadas e ratificadas pelo Brasil. Além disso, é um crime internacional quando praticado no contexto de uma perseguição generalizada e sistemática a uma população civil, nos termos do Estatuto de Roma.”
O desaparecimento forçado é um dos crimes internacionais que merece a mais severa sanção, posto que reúne diversas ações ilícitas que se originam com a prisão ou detenção ilegal, perpassam a prática de tortura, falsidade sobre o paradeiro, subtração de provas, obstrução da Justiça e, quase sempre, culmina no homicídio e na ocultação de cadáver. “Qualquer autoridade pública, civil ou militar, e especialmente o Presidente da República, é obrigada a revelar quaisquer informações que possua sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado ou o paradeiro da vítima”, afirma a nota.
O órgão do Ministério Público Federal ressalta que embora seja grave o desaparecimento de pessoas por parte de organizações criminosas, é incomparavelmente mais sério quando perpetrado pelo Estado, responsável por cumprir a lei e garantir aos acusados proteção à vida e à integridade física, além da sua responsabilidade pela garantia dos direitos fundamentais do cidadão, tais como devido processo legal, presunção de inocência, inafastabilidade da jurisdição, proibição da pena de morte e proibição da tortura.
No documento, a PFDC relembra que o Brasil foi condenado, em duas oportunidades (nos casos Vladimir Herzog e Gomes Lund) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela prática de crimes contra a humanidade e de graves violações aos direitos humanos durante a ditadura militar – sentenças nas quais foi determinado que o Estado promovesse a investigação, o julgamento e a punição pelos crimes de desaparecimento forçado de pessoas, execuções sumárias e tortura. A Corte decidiu, inclusive, que a privação do acesso à verdade dos fatos sobre o destino de um desaparecido constitui uma forma de tratamento cruel e desumano para os familiares e, por si só, é uma grave violação aos direitos humanos.
A ditadura militar e sua decorrente violação de direitos humanos foram objeto da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei nº 12.528/2011. Seu relatório é um documento legal produzido para elucidar fatos que possuíam versões conflitantes, conferindo a expressão da “verdade estatal”, a qual deve ser observada pelos órgãos da administração pública. Nele, aponta a PFDC, consta que o desaparecimento forçado de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi investigado pela CNV e, anteriormente, pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia. À época, o pai do presidente da OAB era funcionário público, com emprego fixo e integrava a Ação Popular. Ao contrário de outros militantes da época, não estava na clandestinidade. Também não consta registro nessas comissões de que tivesse tido participação em algum ato da luta armada. Ele foi visto pela última vez quando deixou a casa de seu irmão, no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974. Provavelmente, foi preso junto com Eduardo Collier Filho por agentes do DOI-CODI do I Exército e, em momento incerto, transferido para o DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, à época dirigido por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Cogita-se que Fernando Augusto tenha sido assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). A Comissão Nacional da Verdade, acrescenta a Procuradoria dos Direitos do Cidadão, concluiu que Fernando Santa Cruz foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família. Essa ação foi cometida em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar instaurada no Brasil em abril de 1964”.
A PFDC observa, na nota pública, que não é a primeira vez que o presidente da República se manifesta em aprovação à violação de direitos humanos na ditadura militar. Em março de 2019 estimulou a celebração do golpe de Estado de 1964 e, em 19 de julho deste ano, expressou-se de modo deletério à jornalista Miriam Leitão, que foi vítima de prisão ilícita e tortura durante o regime militar. “A jornalista estava grávida à época e foi submetida a sevícias diversas, durante 2 meses. Processada na Justiça Militar, foi absolvida. Naquela ocasião, o mandatário do Poder Executivo fez alusão a informações que contradizem as evidências até hoje colecionadas sobre as graves violações aos direitos humanos perpetradas a Miriam Leitão”, pondera a Procuradoria.
Para órgão do MPF, as declarações são graves porque “a responsabilidade do cargo que ocupa impõe ao Presidente da República o dever de revelar suas eventuais fontes para contradizer documentos e relatórios legítimos e oficiais sobre os graves crimes cometidos pelo regime ditatorial. Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento”. A PFDC conclui a nota afirmando que não há sigilo sobre esses dados, conforme a Lei de Acesso à Informação, e que a Constituição exige do Chefe de Estado que aja com moralidade, legalidade, probidade e respeito aos direitos humanos.